Nelson Figueira
Jornalista

Cena 1:

Anos 90. Uma amiga, cujo pai representava honorificamente uma certa nação estrangeira em Foz do Iguaçu, chega a minha casa. No meio da conversa, pergunta se eu havia assistido a uma reportagem, exibida no telejornal da noite anterior, que mostrava “mulatos” (palavra dela) presos sob acusação de formarem uma quadrilha que agia em um bairro da cidade.
— Sim, assisti. Por quê? — respondi, já temeroso.
— Minha mãe disse que ‘aquilo’ é o pior tipo de gente, pois eles têm a inteligência do branco e a maldade do negro – pontuou minha amiga.
— Nossa! — respondi — Sua mãe acha que brancos são bons e inteligentes e negros são maus e burros.
— Claro que não — rebateu ela.
— Ah, não? Então pense um pouco.
[Silêncio]
— É… eu acho que ela acha isso mesmo — disse a jovem de grandes olhos azuis.
— Pois então, cuidado comigo, pois sou misturado, tá? — ironizei.

Cena 2

2019. O secretário-adjunto de turismo de Santos, também membro da diretoria do clube paulista homônimo, tem um áudio vazado. Nele, o rapaz afirma que o mulato (sic) brasileiro, o ‘pardo’ brasileiro não tem caráter. No áudio, ouve-se bem quando ele atribui essa sua “constatação” a um estudo (!!!).

Quase trinta anos separam a primeira da segunda cena. No entanto, pouca coisa mudou no Brasil quando o tema é racismo. Ou melhor, mudou sim. Se na década de 90 o preconceito racial estava disfarçado, quase que camuflado em nossa sociedade – camuflado, mas não ausente – hoje ele está escancarado. Há quem diga que talvez isso seja um fenômeno da contemporaneidade, advindo das novas tecnologias de informação e comunicação (as muito faladas TICs) e das redes sociais. Seja qual for a razão, o certo é que no que diz respeito ao racismo, o panorama é crítico. Tão crítico que, em 2018, um então candidato ao posto maior da República brasileira cunhou (ou melhor, cometeu) a seguinte frase: “Hoje estão tirando nossa alegria de viver, não podemos mais contar piadas de afrodescendentes, de cearenses, de goianos”. Para os incrédulos, deixo aqui o link da notícia: https://tinyurl.com/y6nflhvx.

Ou seja, para ele, fazer piadas sobre negros (cearenses e goianos) é uma diversão que vem sendo “proibida” graças o “politicamente correto”. Na certa, ele tem saudade daqueles áureos tempos em que, no programa Os Trapalhões, o Mussum era chamado de macaco e todo mundo ria. O que ele não sabe (na verdade, sabe sim, mas finge não entender) é que hoje além de apontar o dedo para discriminar, seguem nos apontando armas, nos relegando ao subemprego, nos empurrando para as periferias. E ai de quem reclamar. Este será acusado de vitimismo. Afinal, o fato de nós, negros, brigarmos por mais respeito, na cabeça torpe dos racistas, é mimimi. O que o racista quer é a garantia daquilo que para ele é um direito: discriminar em paz.

E esta discriminação não está apenas na mente de pessoas como o então candidato. Está nas instituições governamentais, na mídia, nas igrejas, nas instituições de ensino. Além disso, está também nos hábitos e costumes — entranhados em nossa sociedade, ambos tipos de discriminação têm denominação: racismo institucional e racismo estrutural (para saber mais, clique https://tinyurl.com/y2w43y3s). E eles repercutem da maneira mais cruel:

• A renda média de pretos no país é de R$ 1.570; dos pardos é de R$ 1.606 e dos brancos é de R$ 2.814 (Fonte: IBGE/PNAD Contínua 2017);
• A taxa de analfabetismo entre brancos é de 4,2% enquanto que para pretos e pardos (a população negra) é de 9,9% (Fonte: IBGE/PNAD Contínua 2016);
• Segundo o IBGE/PNAD, em 2016, 1.835 crianças entre cinco e sete anos de idade trabalhavam. Destas, 35,8% eram brancas e 63,8% eram negras;
• A taxa de desocupação (ou seja, o desemprego) é maior entre os afrodescendentes: 14,5% entre os pardos; 13,6% entre os pretos e 9,5% entre os brancos.
Vale lembrar que nós, negros, somos 50,7% da população brasileira.

Não suficientemente os dados alarmantes, os negros brasileiros seguem sendo vítimas do senso comum presente na sociedade brasileira que nega o racismo, batendo na tecla da democracia racial – que é mais mau-caratismo que falácia – ao mesmo tempo em que discrimina. E pior, além de exercer este racismo, culpabiliza o discriminado, visto pela sociedade como um ser que se vitimiza e está onde está por “não se esforçar”. Neste sentido, entramos em mais um ponto cruel do racismo brasileiro: a crença na meritocracia.

Abro aqui parênteses para falar do senhor R., o jardineiro que mensalmente corta o gramado da minha casa.

Aos 52 anos, senhor R. é seis meses mais jovem do que eu, mas aparenta ser bem mais velho. Todos os dias, ele, que mora no Jardim Jupira, pega sua bicicleta e sai pelas ruas da região da Vila A à procura de trabalho. No verão, ele acorda ainda mais cedo que no inverno. Às sete horas já está na rua, e só interrompe a rotina quando o sol se põe. Quem vive, ou já esteve na fronteira na época do horário de verão, sabe que o sol se põe por volta das 20 horas. Pois bem, para os que acreditam na meritocracia, aquele senhor negro, que trabalha mais de 12 horas por dia, que se locomove de bike, está onde está porque não se esforça. Condenados a repetir o destino do pai, os filhos do sr. R. dificilmente quebrarão este círculo. Para os ‘seguidores’ da meritocracia, a culpa é do próprio sr. R. e de seus filhos, “que não se esforçam”. Por isso, quem se importa?

Felizmente, nem tudo está perdido e alguns ainda se importam. Por isso, defendem as ações afirmativas, as chamadas cotas, que tentam quebrar este círculo ao qual negros e pobres – quase sinonímia no Brasil – ascendam socialmente.

Existentes em vários países do mundo – surpreso? Sim, elas não foram inventadas pela esquerda brasileira – as cotas diminuíram abismos sociais em várias partes. Engana-se, por exemplo, quem pensa que elas são voltadas apenas à população negra. As ações afirmativas são voltadas a minorias étnicas, entendendo minorias não como contingente, mas como representatividade política. Ou seja, no Brasil, os negros (os pretos e os pardos) são a maioria da população em números absolutos, mas minoria em representatividade, e é este um dos focos da cota: diminuir essa diferença.

Como disse Sueli Carneiro, uma das lideranças do movimento feminista negro brasileiro ano passado, em entrevista à Rádio Trip (ouça: https://tinyurl.com/y5g764gr), quando uma pessoa negra vai procurar um emprego, por exemplo, a cor chega antes dela. Se essa pessoa for mulher, a discriminação é maior ainda. Para ela, o racismo brasileiro é ainda mais nefasto do que o regime de segregação nos EUA e o apartheid na África do Sul. “O que a história nos legou é o fato que no regime de segregação norte-americano havia a coisa absurda de haver até bebedouro para pessoas negras e pessoas brancas, mas também havia escolas para negros e escolas para brancos; havia trabalho para negro e trabalho para branco […] isso determinou, por exemplo, que desde cedo os índices educacionais, por exemplo, dos negros norte-americanos sempre tenham sido superiores aos dos brasileiros, pois no Brasil ‘da democracia racial’, no Brasil do ‘somos todos iguais perante à lei sem distinção nenhuma, o que aconteceu foi que os negros saíram da escravidão e tornaram-se livres para morrer nas sarjetas”, diz Sueli.

Ao mesmo tempo que vêm tendo avanços, há muitas discussões em relação às cotas, que se iniciam com os questionamentos sobre a legalidade ou não delas. Mesmo que o Supremo Tribunal Federal tenha apontado para a constitucionalidade das cotas, os detratores partem da Constituição Federal e argumentam que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” e que, ao conceder as cotas, as instituições estariam tratando os cidadãos de maneira diferente (privilegiando negros, em detrimento aos brancos).

O estranho é que os críticos não prestam a atenção em outras “cotas” que existem ou que já existiram. Você, leitor, sabia que já houve reservas de vagas em instituições de ensino da área da agricultura e pecuária a filhos de fazendeiros? Pois sim, em plena Ditadura Militar, foi decretada a chamada Lei do Boi – a Lei nº 5.465, de 3 de Julho de 1968, que você pode ler neste link: https://tinyurl.com/yxbssbgb). Em seu artigo 1º, a lei dizia o seguinte: “Os estabelecimentos de ensino médio agrícola e as escolas superiores de Agricultura e Veterinária, mantidos pela União, reservarão, anualmente, de preferência, de 50% de suas vagas a candidatos agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residam com suas famílias na zona rural e 30% (trinta por cento) a agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residam em cidades ou vilas que não possuam estabelecimentos de ensino médio”.

A lei durou até 1985 e apresentava vários senões. Só pra citar dois: não havia garantia de que os filhos de agricultores mais pobres seriam os beneficiados, e mesmo reservando vagas, havia quem a burlasse, como se pode ver na imagem abaixo:

Além da Lei do Boi, outros dispositivos são listados pela Dra. Helena Theodoro, estudiosa da história e cultura afro-brasileira como sendo cotas, já que dão tratamento diferenciado a parcelas da população: “É muito bom você chegar numa universidade e encontrar outros companheiros negros por conta da cota que nós conseguimos trazer para a comunidade negra. Porque a cota no Brasil sempre existiu. Sempre teve colégio militar para filho de militar: isso é cota. Sempre teve pensão para filha de militar mesmo casa: isso é cota. Sempre teve atendimento especial para os filhos de fazendeiros, a cota do boi. Sempre houve privilégio e apadrinhamento para aqueles elementos que tinham cargos políticos. Tudo isso é cota”, argumenta a pesquisadora em um vídeo da Fundação Cultural Palmares (veja aqui).

O que estranha é que não há – ou não havia à época de cotas como instituída pela Lei do Boi – a mesma comoção, o mesmo vigor crítico que se tem em relações às cotas raciais. Estranhamente, quando o negro era alijado do sistema educacional brasileiro, a sociedade não prestava a atenção nesse fato e nem na população que estava de fora. A partir do momento em que as cotas vieram, surgiram até mesmo questionamentos travestidos de boas intenções. Adeptos desses discursos, proferem sempre: “Eu vejo todo mundo como igual, as cotas discriminam”; “Isso é racismo reverso”; “Gente, os negros são capazes como nós, brancos. Falar que eles precisam de cotas é inferiorizá-los”. Seria bem interessante que os que têm esses discursos se aliassem às lutas dos negros para não serem fuzilados por militares dentro de seus veículos em uma manhã de domingo, quando iam para um chá de bebê com a família. E nisso, a mídia tem grande contribuição, ao propagar a ideia do brasileiro cordial e o mito da convivência pacífica entre as etnias.

Para encerrar, mais uma cena e que motivou o honroso convite para escrever este texto.

Cena3:

2019, em um grupo de imprensa, duas colegas queridas iniciam a discussão sobre a necessidade ou não de se chamar a atenção para o fato de a jornalista Maria Julia Coutinho, a Maju, ser a primeira negra a apresentar o Jornal Nacional. À época, esse fato era um dos mais comentados no país.
A primeira ponderou que a discriminação começava justamente no fato de se chamar a atenção para o fato de uma negra assumir o posto no telejornal, “que tem quase 50 anos”. Para ela, não havia diferença, pois a cor não interfere na competência. Isso, encerrou, demonstraria a hipocrisia do Brasil.

A segunda colega admitiu pensar o mesmo, e pediu minha opinião. Mas, antes mesmo de eu ler a mensagem, duas colegas, uma delas, minha amiga, expressaram suas opiniões.

A primeira lembrou que se não houvesse tanto preconceito no país, não seria mesmo necessário divulgar. Porém, da forma como é nossa sociedade, a situação envolvendo Maju Coutinho em si acabava se transformando em notícia, como motivo para refletir ou até de denúncia.

Por fim, uma segunda lembrou que o fato de o JN ter quase 50 anos e nunca ter tido uma mulher negra em sua bancada dizia muito sobre o país, sobre a mídia TV e também sobre o próprio jornalismo. Para ela, chamar a atenção ao fato não se tratava discriminação, mas de representatividade.

E, na minha opinião, ambas estão certas. Como respondi às colegas, em uma sociedade ideal, sem racismo, isso não seria notícia até porque não teria demorado 50 anos para uma mulher negra se sentar na bancada. Mas numa sociedade como a nossa, em que uma mulher negra leva 50 anos para se sentar na bancada do telejornal mais assistido do país, isso tem de ser notícia. Fazendo um paralelismo, é como o Dia Internacional da Mulher, é preciso por quê? Porque as mulheres ainda não são respeitadas no mundo e são necessárias datas para se falar disso (e a partir dessas datas, a sociedade ir se conscientizando). É o mesmo caso do Dia Nacional da Consciência Negra. Alguns dizem: “Ah, mas não tem o Dia nacional da Consciência Branca”. Os brancos não são a maioria na base da pirâmide social; não demoraram 40 anos para apresentarem o JN (caso do Heraldo Pereira). É preciso meter o dedo nessa ferida pra que as pessoas prestem a atenção. Aliás, uma prova do racismo brasileiro é o fato de o feriado do Dia Nacional da Consciência Negra ser questionado, mas não se questiona Tiradentes, por exemplo.

Para as pessoas brancas, passam despercebidas essas coisas, para os negros, não. Mas até mesmo repórteres negros há poucos. Deveriam ser pelo menos 40%, já que somos metade da população do país. Mas não sabemos nem se chegam a 10% nas TVs). Outro ponto importante: vocês já imaginaram o que representa a uma criança negra ver a Maju ou o Heraldo Pereira? Todos os dias, as crianças veem a Fátima Bernardes, a Sandra Annemberg e apenas recentemente passaram a ver a Maju. Ou seja, só recentemente muitas delas puderam pensar: “Nossa, eu posso me sentar ali também”.

*Nelson Figueira é jornalista em Foz do Iguaçu.